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A INVENÇÃO DO MUNDO

FERNANDA CHIECO

Exposição Individual - Galeria Laura Marsiaj, Rio de Janeiro, Brasil

por Marcelo Campos

A artista Fernanda Chieco recria mundos ativados por fabulações. A partir de sujeitos nus, configuram-se grupos, comunidades que expõem seus corpos como se pertencessem a tribos longínquas, irreconhecíveis. No desenho à grafite e lápis de cor, as ações praticadas partem de observações sobre o corpo e a natureza. Assim, insetos, animais, plantas, frutas, elementos urbanos apresentam-se ora como descoberta surpreendente, ora como extensões dos corpos em metamorfoses. Vemos homens com cabeças de girafa, mulheres expelindo peixes, libélulas, flores que se confundem com a própria condição anatômica humana.

 

Ao organizar personagem em grupo, os desenhos em grafite de Chieco nos remetem aos bicos de pena elaborados para enciclopédias naturalistas sobre o Novo Mundo. Constituídas por missionários, pastores, botânicos, tais imagens da Era das Navegações informavam sobre o estranho e maravilhoso mundo com um elenco de canibais, bichos fantásticos, ritos, danças. Tudo carregado com a tinta dos preconceitos, da dominação, e da espetacularização falaciosa. Nos desenhos de Fernanda Chieco também as cenas configuram espécies de rituais. Mas, agora, em vez das clareiras da densa floresta do século XV, vemos sujeitos brincando com orelhões e cones de trânsito. Estes são os adornos do século XXI. De algum modo, estimulada pela imaginação da artista, a encenação mantém o estranhamento, como se houvesse uma outra tribo faminta, predadora, desejosa pela dominação dos animais e pela destruição das cidades. Esta comunidade se alimenta de elefantes, girafas, frutas e ritualiza o encontro, a conquista, a beberagem de sangue, o estranhamento diante de um novo mundo.

 

Em curiosas assemblages, Fernada Chieco ativa, ainda mais, a fábula. São caixas com cabeças de boneca ou com insetos acompanhadas por manuais descritivos, modos de usar. Ali, atribuem-se características, predicados, deixando o caráter onírico mais evidente. “Percevejo chorão do Líbano (...) deve-se posicionar uma mulher (...) apoiada sobre os pés e mãos”. E assim o modo de capturar o inseto vai discorrendo sobre os possíveis sucessos e as possíveis ameaças à empreitada. Caso tudo dê errado, a proliferação da praga pode exceder os limites.

 

Anne Cauquelin afirma que a invenção de mundos além do nosso é “tema frequente evocado desde a Antiguidade”. Ainda assim, tal hipótese seria pouco verossímil. O que vemos na arte de Fernanda Chieco é a confirmação de que cabe à arte a invenção de mundos, reconhecendo sujeitos, estranhando atitudes, ativando um modo de subverter o processo civilizatório. Com isso, a arte cria antídotos ao “tédio de uma continuidade sem mudança”.

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