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FORAM-SE

(GONE)

Exposição Individual - SÉ Galeria, São Paulo, Brasil

por Maria Montero, Novembro/2014

A cidade estava fechada. Interditada. Proibida.

 

Na via que dava acesso à ela, dezenas de placas sobrepostas sinalizavam perigo. Não entre.

 

Ouviu que no estado do Colorado há mais de mil e quinhentas cidades fantasmas. Algumas se transformaram em locais turísticos.

 

Alugou um carro e se aventurou por uma que não virou nada a não ser essa grande ruína de cidade, intacta, em estado absoluto de deterioração permanente.

 

Não encontrou alma alguma.

 

Vagos eram os motivos daquele êxodo.

 

Fato é que tudo estava apenas abandonado: casas, vidas passadas, cafés de beira de estrada.

 

Pela primeira vez na vida sentiu medo. Era estrangeira, estava só.

 

Percebia estranhas ausências-presenças, ruídos. O calor e o vento confundiam ainda mais os sentidos.

 

Ouviu uma lista telefônica revirar  suas páginas lentamente, uma a uma, como se alguém fisicamente virasse suas folhas.

 

Mas não havia ninguém, além dela, naquela cidade.

 

Quase foi comida por um urso. Sentença que poderia fazer parte de mais uma de suas anedotas fantásticas.

 

Fernanda Chieco, desde seus primeiros trabalhos, se debruçou nos contornos (internos e externos) do corpo humano. Primeiro construiu objetos usando o desenho apenas para fins de projeto. Depois o traço foi criando autonomia e seus corpos desenhados conectavam-se através de estranhos dispositivos.

 

Seus avós eram cabelereiros, gosta de colher cabelos, olha com fixação para os ralos. Tem obsessão por banheiros e pela materialidade dos papéis.

 

Nas suas andanças visitou exposições de bactérias e de cabeças de uma tribo longínqua, que, se não me falha o entendimento, foram encolhidas por alguma técnica bizarra, porém, ainda assim, conservam seus cabelos.

 

Com seus desenhos esmiuçou funções e disfunções do corpo humano: líquidos, peidos, seres que chupam luz vermelha.

 

Aos poucos seu universo fantástico foi habitando o papel na construção de narrativas improváveis que o desenho, assim como a literatura, possibilitam: corpos mesclaram-se com elefantes, melancias, memórias, focas, línguas, cata-moscas, geléias, lobos e girafas; apenas para citar alguns de seus peculiares elementos-personagens.

 

Mas Chieco estava só, no meio do deserto e quase foi comida por um urso.

 

Talvez por isso, nesse conjunto de trabalhos, a narrativa é a do abandono, da solidão, da ruína, dos zumbis, pessoas sem rosto e corpos sem contorno.

 

Retrato de uma cidade descartada pelo desuso.

 

Há, formalmente, algo importante que deve ser reconhecido. Em Gone (Foram-se) a artista abandona o grafite, seu maior aliado, e se utiliza da aquarela.

 

O desejo do contato com a água, em pleno deserto americano, parece ter-lhe indicado esse caminho.

 

A cor, que sempre foi gradual e servia anteriormente para ressaltar volumes, aparece como ocupação cromática total, em contraste apenas com os espaços em branco deixados nos papéis.

 

É surpreendente o grande formato servir como tela para a aquarela, acostumada com tamanhos menores. O gesto não mais de exímia desenhista e sim de pintora deixa ver o passeio do pincel e do molhado da tinta.

 

Ao elaborarmos juntas essa primeira individual de Fernanda Chieco na Sé, vários  caminhos poderiam ter sido tomados, pois, sua produção, além de vasta, é constante e diversificada.

 

Essa série, porém, nos pareceu apropriada, não só pelo ineditismo formal, mas pela proximidade apocalíptica de sua temática com o nosso momento presente.

 

O Brasil sofre do desprezo e do abandono de suas políticas.

 

Falta água, falta recursos, falta caráter.

 

Nas minhas andanças pelo centro histórico da cidade, me pego divagando sobre essa cidade monstruosa que é São Paulo. Num breve devaneio, imagino o que será dela caso esgotem-se as possiblidades de convívio.

 

Ouso imaginar sua falência.

 

Nesse caso, todo e qualquer bem adquirido, sejam casas, propriedades, carros, ou roupas não teriam serventia ao homem, seriam largadas sozinhas como nas cidades fantasmas americanas.

 

A cidade então, se preencheria de vazios e, quem sabe, receberiam o passeio corajoso de algum artista estrangeiro.

 

Transformariam-se em ruínas sem corpo, numa cidade de almas de concreto, aquarelada pelas poucas esperanças que ainda sustentamos.

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